domingo, 16 de junho de 2024

A importância de garantir os territórios tradicionais aos caiçaras

 Por Renato Cintra Lopes *

Caiçara é a denominação dada à população tradicional dos litorais de São Paulo, do Paraná e das regiões de Paraty e Angra dos Reis, formada pela miscigenação entre indígenas, portugueses e escravizados africanos. São diferenciados por estarem há séculos habitando o litoral e praticando sua cultura, seus costumes e sua relação com a terra e o mar.

Estão associados à Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e Comunidades Tradicionais[1], de 2007. Essa política pública objetiva garantir território, assistência técnica, inclusão socioprodutiva a grupos vulneráveis, os quais foram vítimas de políticas sucessivas de exclusão social praticadas no Brasil desde 1500.

Hoje, com o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, reativado no ano passado, tendo como representantes Adriana de Barra do Una/Peruíbe e suplentes Marcela Albino de Cananeia / 2ª Suplente - Aorélio Domingues de Borba, todos representantes da Coordenação Nacional das Comunidades Tradicionais Caiçaras - CNCTC (RJ-SP-PR).

Caso emblemático são os caiçaras da Estação Ecológica Juréia Itatins, que foram expulsos de suas moradias tradicionais pelo governo paulista no tempo da ditadura e até hoje estão na luta para retomar sua terra. Dauro Prado, representante desta comunidade, que já compôs a Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais[2], diz que o caiçara tem como costume a agricultura e, de forma complementar, a pesca.

Caso similar ocorreu no Parque Estadual da Ilha do Cardoso, onde muitos residentes em Cananéia relatam sua história de agricultores de banana, mandioca e milho e, hoje, não podem participar de programas de inclusão produtiva como o PAA – Programa de Aquisição de Alimentos[3] e PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar[4], ou mesmo vender produtos agrícolas nas feiras e mercados regionais. Histórias como essa também são vivenciadas por outras diversas comunidades marginalizadas de suas terras tradicionais e confinadas em cidades, tendo que ressignificar seu modo de vida.

Experiência interessante de retomada de territórios e fortalecimento social acontece no Fórum de Comunidades Tradicionais de Paraty-Angra-Ubatuba[5], com sede em Paraty e apoio da Petrobras e Fundação Fiocruz. Também é interessante citar o Coletivo Caiçara de São Sebastião, Ilha Bela e Caraguatatuba[6], que vem resistindo na retomada de seus territórios e sua cultura e realizando a autodemarcação de suas terras, com a implantação de placas sinalizadoras de localidades tradicionais.

Em Ubatuba foi criada em 2023 a Política Municipal dos Povos Originários e Comunidades Tradicionais[7], o Conselho Municipal e o Fundo Municipal, depois da realização da I Conferência Municipal das Comunidades Tradicionais de Ubatuba registradas em seu Relatório Final, construído a partir da ampla participação dos Povos Indígenas, Comunidades Quilombolas e Caiçaras de Ubatuba ao longo do ano de 2022.

Em Ilha Bela foi criado pela Lei Municipal nº 1.384 de 30/09/2019, o Conselho Municipal das Comunidades Tradicionais[8], que é responsável por propor ações voltadas à promoção e ao desenvolvimento sustentável das comunidades, além de atuar no controle social de políticas públicas, assim como exercer a orientação normativa e consultiva sobre temáticas atinentes à promoção e desenvolvimento sustentável das comunidades tradicionais no município.

Cabe menção ao trabalho que vem sendo realizado pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU) para emissão dos Termos de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) em áreas da Marinha, o qual é um documento que reconhece o uso secular da comunidade tradicional e garante o acesso às políticas públicas ligadas à terra. Recentemente, em 2023, o Quilombo da Fazenda conquistou o feito histórico e em 2015 a tradicional comunidade Caiçara da Baía de Castelhanos do município de Ilhabela, litoral norte de São Paulo, obteve nove TAUS coletivos que contemplam 306 pescadores e caiçaras[9].

Em 2008, foi publicada a LEI Nº 12.810, atribuindo novas denominações por subdivisão, reclassificação, exclusão e inclusão de unidades de conservação de proteção integral e uso sustentável no Mosaico de Unidades de Conservação do Jacupiranga, criando Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento Sustentável no município. Isso representou um marco na retórica preservacionista do governo paulista há décadas, constituindo uma nova página da política ambiental, a qual sempre se pautou na natureza sem a presença de povos e comunidades tradicionais.

No entanto, as discussões seguem no sentido de permitir que as comunidades extrativistas paulistas tenham o direito de fazer suas roças tradicionais. Caso emblemático é o das roças quilombolas do Vale do Ribeira, onde o Sistema Agrícola Tradicional Quilombola (SATQ) foi reconhecido, em 2018, como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Hoje continuam lutando para que haja uma política estadual que permita que suas roças de coivara sejam autorizadas pelos órgãos competentes.

Em Cananéia foi criado, pela gestão municipal de 2011, de forma pioneira no Estado de São Paulo, o Conselho Municipal de Povos e Comunidades Tradicionais, fruto de uma intensa articulação da Rede Cananéia, mas que esbarrou em falta de apoio político e social.

Contudo, comunidades como do Marujá, Enseada da Baleia e Pereirinha conseguiram prevalecer, fruto de uma intensa mobilização social. As décadas de 60, 70 e 80 foram marcadas pela resistência das comunidades tradicionais, num momento em que não havia movimentos sociais que defendiam esse segmento.

A criação da Reserva Extrativista Federal do Mandira, em 2002, foi um marco importante na luta pelos direitos de comunidades tradicionais no município, tendo sido, sem dúvida, um importante impulsionador na mudança de paradigma para a conservação no Estado de São Paulo.

Na década de 90 iniciou-se essa discussão, onde tem-se a criação do NUPAUB - Núcleo De Apoio à Pesquisa Sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras na USP – Universidade de São Paulo, sob coordenação do professor Antonio Carlos Sant'Ana Diegues, contando com obras memoráveis como O Mito Moderno da Natureza Intocada e Etnoconservação, falando que essas comunidades são amigas e formadoras do que hoje é constituída a rica biodiversidade na Mata Atlântica e outros biomas.

Cabe menção, nesse interim, de garantir terras de uso comum às populações tradicionais no Brasil, a criação, em 1987, dos Projetos de Assentamento Agroextrativista pelo INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, num período de redemocratização e em um formato pioneiro de utilização de espaços territoriais comunitários no Brasil, até mesmo antes da criação da Reserva Extrativista Chico Mendes, em 1990. Em seguida, em 1999, houve a criação dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), também pelo INCRA.

Outro instrumento de fortalecimento das comunidades tradicionais foi a criação do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Sociobiodiversidade Associada a Povos e Comunidades Tradicionais (CNPT), dentro da estrutura do Ibama - Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, em 1992, quando da criação do Ministério do Meio Ambiente e no mesmo ano da ECO 92.

Desta forma, vemos que muito foi feito em prol das comunidades tradicionais no Brasil e, muito há que ser feito, para garantir sua livre autonomia segundo seus costumes e tradições.



[1] https://www.gov.br/mdh/pt-br/navegue-por-temas/igualdade-etnico-racial/acoes-e-programas/politica-nacional-de-desenvolvimento-sustentavel-dos-povos-e-comunidades-tradicionais

[2] https://www.gov.br/participamaisbrasil/cnpct

[3] https://www.gov.br/mds/pt-br/acoes-e-programas/inclusao-produtiva-rural/paa

[4] https://www.gov.br/fnde/pt-br/acesso-a-informacao/acoes-e-programas/programas/pnae

[5] https://www.otss.org.br/noticias/categories/f%C3%B3rum-de-comunidades-tradicionais

[6] https://www.instagram.com/arrelacoletivocaicara/

[7] https://www.gov.br/mda/pt-br/acesso-a-informacao/povos-e-comunidades-tradicionais/repositorio-de-marcos-regulatorios-de-regularizacao-fundiaria-de-povos-e-comunidades-tradicionais/municipais/ubatuba-sp-2023_lei-no-4567_conselho-municipal-dos-povos-originarios-e-comunidades-tradicionais.pdf

[8] https://www.ilhabela.sp.gov.br/portal/secretarias/8/conselho-municipal-das-comunidades-tradicionais/

[9] https://www.gov.br/gestao/pt-br/assuntos/patrimonio-da-uniao/noticias/spu-faz-entrega-de-taus-historica-em-sao-paulo

Renato Cintra Lopes é novo sócio contribuinte da Associação Rede Cananéia, graduado em Engenharia Florestal e especialista em Políticas para Povos e Comunidades Tradicionais.

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