Por Renato Cintra Lopes *
Caiçara
é a denominação dada à população tradicional dos litorais de São Paulo, do
Paraná e das regiões de Paraty e Angra dos Reis, formada pela miscigenação
entre indígenas, portugueses e escravizados africanos. São diferenciados por
estarem há séculos habitando o litoral e praticando sua cultura, seus costumes
e sua relação com a terra e o mar.
Estão
associados à Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Povos e
Comunidades Tradicionais,
de 2007. Essa política pública objetiva garantir território, assistência
técnica, inclusão socioprodutiva a grupos vulneráveis, os quais foram vítimas
de políticas sucessivas de exclusão social praticadas no Brasil desde 1500.
Hoje,
com o Conselho Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, reativado no ano
passado, tendo como representantes Adriana de Barra do Una/Peruíbe e suplentes
Marcela Albino de Cananeia / 2ª Suplente - Aorélio Domingues de Borba, todos
representantes da Coordenação Nacional das Comunidades Tradicionais Caiçaras -
CNCTC (RJ-SP-PR).
Caso
emblemático são os caiçaras da Estação Ecológica Juréia Itatins, que
foram expulsos de suas moradias tradicionais pelo governo paulista no tempo da
ditadura e até hoje estão na luta para retomar sua terra. Dauro Prado,
representante desta comunidade, que já compôs a Conselho Nacional de Povos e
Comunidades Tradicionais,
diz que o caiçara tem como costume a agricultura e, de forma
complementar, a pesca.
Caso
similar ocorreu no Parque Estadual da Ilha do Cardoso, onde muitos residentes
em Cananéia relatam sua história de agricultores de banana, mandioca e milho e,
hoje, não podem participar de programas de inclusão produtiva como o PAA –
Programa de Aquisição de Alimentos
e PNAE – Programa Nacional de Alimentação Escolar,
ou mesmo vender produtos agrícolas nas feiras e mercados regionais. Histórias
como essa também são vivenciadas por outras diversas comunidades marginalizadas
de suas terras tradicionais e confinadas em cidades, tendo que ressignificar
seu modo de vida.
Experiência
interessante de retomada de territórios e fortalecimento social acontece no
Fórum de Comunidades Tradicionais de Paraty-Angra-Ubatuba,
com sede em Paraty e apoio da Petrobras e Fundação Fiocruz. Também é
interessante citar o Coletivo Caiçara de São Sebastião, Ilha Bela e
Caraguatatuba,
que vem resistindo na retomada de seus territórios e sua cultura e realizando a
autodemarcação de suas terras, com a implantação de placas sinalizadoras de
localidades tradicionais.
Em
Ubatuba foi criada em 2023 a Política Municipal dos Povos Originários e
Comunidades Tradicionais,
o Conselho Municipal e o Fundo Municipal, depois da realização da I Conferência
Municipal das Comunidades Tradicionais de Ubatuba registradas em seu Relatório
Final, construído a partir da ampla participação dos Povos Indígenas,
Comunidades Quilombolas e Caiçaras de Ubatuba ao longo do ano de 2022.
Em
Ilha Bela foi criado pela Lei Municipal nº 1.384 de 30/09/2019, o Conselho
Municipal das Comunidades Tradicionais,
que é responsável por propor ações voltadas à promoção e ao desenvolvimento
sustentável das comunidades, além de atuar no controle social de políticas
públicas, assim como exercer a orientação normativa e consultiva sobre
temáticas atinentes à promoção e desenvolvimento sustentável das comunidades
tradicionais no município.
Cabe
menção ao trabalho que vem sendo realizado pela Secretaria do Patrimônio da
União (SPU) para emissão dos Termos de Autorização de Uso Sustentável (TAUS) em
áreas da Marinha, o qual é um documento que reconhece o uso secular da
comunidade tradicional e garante o acesso às políticas públicas ligadas à
terra. Recentemente, em 2023, o Quilombo da Fazenda conquistou o feito
histórico e em 2015 a tradicional comunidade Caiçara da Baía de Castelhanos do
município de Ilhabela, litoral norte de São Paulo, obteve nove TAUS coletivos
que contemplam 306 pescadores e caiçaras.
Em
2008, foi publicada a LEI Nº 12.810, atribuindo novas denominações por
subdivisão, reclassificação, exclusão e inclusão de unidades de conservação de
proteção integral e uso sustentável no Mosaico de Unidades de Conservação do
Jacupiranga, criando Reservas Extrativistas e Reservas de Desenvolvimento
Sustentável no município. Isso representou um marco na retórica
preservacionista do governo paulista há décadas, constituindo uma nova página
da política ambiental, a qual sempre se pautou na natureza sem a presença de
povos e comunidades tradicionais.
No
entanto, as discussões seguem no sentido de permitir que as comunidades
extrativistas paulistas tenham o direito de fazer suas roças tradicionais. Caso
emblemático é o das roças quilombolas do Vale do Ribeira, onde o Sistema
Agrícola Tradicional Quilombola (SATQ) foi reconhecido, em 2018, como
Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil pelo IPHAN - Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional. Hoje continuam lutando para que haja uma
política estadual que permita que suas roças de coivara sejam autorizadas pelos
órgãos competentes.
Em
Cananéia foi criado, pela gestão municipal de 2011, de forma pioneira no Estado
de São Paulo, o Conselho Municipal de Povos e Comunidades Tradicionais, fruto
de uma intensa articulação da Rede Cananéia, mas que esbarrou em falta de apoio
político e social.
Contudo,
comunidades como do Marujá, Enseada da Baleia e Pereirinha conseguiram
prevalecer, fruto de uma intensa mobilização social. As décadas de 60, 70 e 80
foram marcadas pela resistência das comunidades tradicionais, num momento em
que não havia movimentos sociais que defendiam esse segmento.
A
criação da Reserva Extrativista Federal do Mandira, em 2002, foi um marco
importante na luta pelos direitos de comunidades tradicionais no município,
tendo sido, sem dúvida, um importante impulsionador na mudança de paradigma
para a conservação no Estado de São Paulo.
Na
década de 90 iniciou-se essa discussão, onde tem-se a criação do NUPAUB -
Núcleo De Apoio à Pesquisa Sobre Populações Humanas e Áreas Úmidas Brasileiras
na USP – Universidade de São Paulo, sob coordenação do professor Antonio Carlos
Sant'Ana Diegues, contando com obras memoráveis como O Mito Moderno da
Natureza Intocada e Etnoconservação, falando que essas comunidades
são amigas e formadoras do que hoje é constituída a rica biodiversidade na Mata
Atlântica e outros biomas.
Cabe
menção, nesse interim, de garantir terras de uso comum às populações
tradicionais no Brasil, a criação, em 1987, dos Projetos de Assentamento
Agroextrativista pelo INCRA - Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária, num período de redemocratização e em um formato pioneiro de utilização
de espaços territoriais comunitários no Brasil, até mesmo antes da criação da
Reserva Extrativista Chico Mendes, em 1990. Em seguida, em 1999, houve a
criação dos Projetos de Desenvolvimento Sustentável (PDS), também pelo INCRA.
Outro
instrumento de fortalecimento das comunidades tradicionais foi a criação do
Centro Nacional de Pesquisa e Conservação da Sociobiodiversidade Associada a
Povos e Comunidades Tradicionais (CNPT), dentro da estrutura do Ibama - Instituto
Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis, em 1992, quando
da criação do Ministério do Meio Ambiente e no mesmo ano da ECO 92.
Desta
forma, vemos que muito foi feito em prol das comunidades tradicionais no Brasil
e, muito há que ser feito, para garantir sua livre autonomia segundo seus
costumes e tradições.